Quando em 2012, defendi a primeira dissertação de mestrado da PUC MINAS com o tema dos Direitos dos Animais e que logo depois se transformou em livro com o título: “A Condição Animal – uma aporia moderna”, pouca bibliografia nacional existia sobre o tema e mesmo a estrangeira era escassa. E mesmo hoje, existe ainda grande desinformação sobre o assunto. Aporia é definida como uma dificuldade, impasse, paradoxo, incerteza ou momento de contradição que impedem o sentido de uma proposição. Qual é a grande aporia da modernidade no pós-humanismo? O termo pós-humanismo já indica o paradoxo, o homem não é mais o centro da existência terrestre, mas parte dela, não é o único “sujeito de direitos”, porque não é a única espécie capaz de experimentar uma existência sensível e complexa, os animais podem ter prazer e sofrer. Citando Jeremy Bentham (1748-1832):
“É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adulto são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, de uma semana, ou até mesmo de um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é ‘Eles são capazes de raciocinar?’ nem ‘São capazes de falar?’, mas, sim, ‘Eles são capazes de sofrer?’
– Se um ser sofre, não pode existir justificativa moral para alguém se recusar a levar esse sofrimento em consideração. Não importa a natureza do ser, o princípio de igualdade requer que seu sofrimento seja considerado igual ao sofrimento semelhante de qualquer outro ser.”
A aporia em sua complexidade, agora com sua subjetividade ampliada, aponta para a questão ambiental, a natureza sendo reconhecida como entidade viva, como a casa de todos, que está ameaçada pela atividade predatória humana que desencadeou a ameaça climática.
Voltando à “condição animal” e ao meu livro, uma amiga fotógrafa me pediu um texto para publicar com suas fotos explicando resumidamente o tema do livro. Não é fácil resumir, pois aborda questões históricas, religiosas, biológicas, jurídicas e filosóficas. Mas reputei a questão ética como fundamental.
O conceito de animal foi aquele que talvez menos tenha sofrido alterações em seu significado ao longo da história ocidental. A nossa classificação é bastante imprecisa, pois utilizamos uma única palavra, “animal”, para designar seres tão diferentes, como elefantes e microrganismos. No entanto, é também usual se utilizar a palavra “animal” para se referir àqueles que não são humanos.
Mas também, todos que ficaram à margem do conceito de “humanidade” pertenceram em algum tempo histórico ao universo da animália, da bestialidade, da selvageria. Revisitando um passado recente, constatamos a exclusão de determinados grupos pelo não reconhecimento de sua condição “humana”. A escravidão não teria sido possível, se homens por causa da cor de sua pele, não tivessem sido considerados “animais”. Ainda hoje designamos com nomes de animais todos aqueles humanos aos quais queremos diminuir: afeminados são veados, pessoas de pouca inteligência são burros, de pouca higiene são porcos, mulheres “fáceis” são galinhas, os gordos, baleias…
Na verdade, o que nos incomoda tanto? A diferença. A diferença do outro nos afronta, agride, invade. Portanto, abordei no meu livro a Ética da Alteridade, inspirada por Levinas, filósofo franco-judeu, que conheceu a dor dos campos de concentração nazistas. Alteridade, muito mais que um conceito, é uma prática. É a descoberta do outro Ser, e a imediata responsabilização pelo outro. Entender as angústias do diferente e tentar pensar no sofrimento do outro. A alteridade mostra que só é possível perceber a si mesmo em oposição à percepção do outro. O outro me constitui.
A alteridade se distingue da empatia, enquanto a empatia se baseia na identidade, na capacidade de sentir o que o outro sente, e está mais no campo do “pathos” dos sentimentos, a alteridade se aplica à diferença, está no campo de ética, é intimação ao agir em favor do sofrimento do outro, ainda que eu não o entenda ou compartilhe.
No meu livro, cunhei uma palavra para designar a alteridade para com os animais, OUTRIDADE, que seria a alteridade para com o radicalmente outro, o animal não humano. A alteridade para com os animais é a absoluta alteridade, a mais completa evasão, a “substituição extraordinária”, desperta daquele que não fala, mas me olha em súplica e fragilidade e em pulsante vida. A partir daí, a hierarquia entre o homem e o animal não é mais relevante no ponto do sentido do sofrimento, e ainda é precisamente este o ponto que marca a distinção mais relevante para uma ética da exposição ao prazer e à dor: não seria entre o humano e o animal, mas sim entre o animal sensível (humanos ou não).
Talvez hoje, diante de um futuro incerto, percebamos o animal que somos e como nosso conceito de humano é próximo do conceito de animal: sem o animal provavelmente não seremos homens, pois foi sempre com base nesta diferença que construímos o conceito de humano. O outro animal, me constitui humano.
Portanto, é antes uma questão indissociável do paradigma pós-humanista – uma questão que leva a pensar os fins do humano, uma questão que põe o conceito de humanidade à prova – bem como a compaixão e a responsabilidade que a definem ou pelas quais ela deveria definir-se.
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