Terremotos abalam terras e certezas

Subindo os degraus de um antigo castelo no Japão, há muitos anos, percebi que eles tinham alturas e distâncias diferentes. Era impossível avançar sem olhar para o chão, tropeçando na certa. Descobri mais tarde que essa era uma estratégia militar para retardar os ataques dos inimigos, obrigando-os a observar o percurso enquanto subiam. Volta e meia me pego andando distraída, trumbicante, e me lembro da lição do castelo japonês. É preciso estar atento onde se pisa, conhecer o chão. Isso já é difícil o bastante, mesmo quando o piso está parado. Imagina só quando não.
A terra sob nossos pés é das coisas mais certas: é o centro do planeta exercendo a lei da gravidade, nos sustentando com sua materialidade. E, no entanto, por vezes ela treme, sacode, ruge. Os recentes e graves terremotos na Turquia e Síria nos lembram de que nada é estático, por mais sólido que pareça. A Terra é viva por dentro, ela dança, serpenteia.

Me lembro da primeira vez que senti o piso balançar, também no Japão. A mesa do bar tremia, a água sozinha se mexendo nos copos. Um chacoalhar no corpo beirando a embriaguez. Algo dentro de mim mudou. Perdi uma certa inocência. Sou geóloga, conheço a dinâmica das placas tectônicas (grandes blocos rochosos que compõem a superfície da Terra e que se movimentam em velocidades lentas). Sei que esses fenômenos são naturais e inerentes ao planeta. Mas nenhum conhecimento teórico me ensinou o que aprendi na prática: o chão que se move espanta, com espasmos, nossas mais absolutas certezas.

É claro que há regiões onde os terremotos são comuns. Há gente que vê um rio de lavas soltando fumaça do seu jardim. Há crianças que aprendem na escola a se proteger debaixo das carteiras e abraçar os joelhos quando tudo começar a tremer. Já em outros lugares, como no nosso Brasil, não é coisa sobre a qual muito se fale. Porém, nem aqui e em lugar nenhum estamos ilesos às forças da natureza. É só observar os frequentes tremores de terra sentidos nas vizinhanças de nossa região, em Sete Lagoas, Minas Gerais, nos últimos anos.

É certo que há pré-históricas falhas que atravessam o arcabouço da terra e a fraturam. Certos movimentos são inevitáveis. Como uma batida ou um tropeço, que quebra um osso. Mas cada um de nós de certo modo machuca, sangra. Quando explodimos bombas em uma mina. Quando bombeamos toda a água de um poço. Nem se trata de sermos malvados, ainda que sejamos. Desde a luz que se acende à água que tomamos, tudo vem da terra. A gente a cutuca sem saber se quebra.

Observar os degraus de um castelo não vai impedir o chão de tremer, mas saber que o caminho é diverso, entender que o planeta é mutante e atentar para cada passo, verdadeiro ou falso, pode nos render menos tropeços.

Gisele Kimura / Membro do conselho deliberativo da Promutuca./ www.promutuca.com.br • adm.promutuca@gmail.com

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